As últimas semanas foram decisivas no combate à violência de gênero no Brasil. Uma sucessão de crimes contra mulheres, envolvendo intimidação, agressão física, assédio sexual e tentativa de estupro, foi denunciado em alto e bom som, gerando grande cobertura midiática e, diferente do que seria há alguns anos, com a balança pesando a favor da vítima. O cantor Victor Chaves, o médico Marcos Härter, o ator José Mayer e o chef Leandro Pimenta são investigados na Justiça por diferentes motivos, mas têm em comum o fato de pertencerem a uma sociedade machista e patriarcal. Embora cada configuração seja específica, temos que admitir que vivemos em uma cultura que se habituou, perversamente, a enxergar o sexo feminino como dependente, submisso – e que, pela pretensa fragilidade, mereceria o uso da força.
Embora antiga e entranhada, só mais recentemente a violência de gênero tem recebido a atenção e a judicialização necessárias, tanto no sentido de punição quanto de agressão. No ano passado, o país completou uma década da Lei Maria da Penha (11.340), voltada especificamente para agressões domésticas, e, em 2015, sancionou a Lei do Feminicídio (13.104), classificando como hediondos os crimes motivados por gênero. “A divulgação tem tornado a aplicação das leis cada vez mais efetivas e motivado as vítimas a procurar ajuda. Só em março deste ano, em Belo Horizonte,registramos 800 atendimentos, executamos 787 medidas preventivas e instauramos 981 inquéritos”, relata a delegada Ana Paula Lamego Balbino, titular da 1ª Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam).
É verdade que as leis trouxeram avanços, mas ainda falta muito para que haja uma queda significativa de ocorrências. No caso de crimes domésticos, muitas vítimas se recusam a procurar ajuda, seja por medo de sofrer ainda mais abusos, por estarem abaladas psicológica e fisicamente ou até mesmo por não identificarem aquele comportamento como agressão, e sim como um padrão – a exemplo do episódio visto no Big Brother Brasil, em que a vítima, a estudante Emilly, ficou em choque com a expulsão do agressor, Marcos. “A mulher tem dificuldade de romper o ciclo de violência e denunciar o agressor, normalmente um homem com quem ela tem vínculo afetivo, como marido ou namorado”, observa Ana Paula.
O relacionamento doméstico abusivo configura-se também pela violência psicológica, a priori, antecedente da agressão física. “Algumas vítimas sofrem caladas por anos, com a alma adoecida e com os filhos como testemunha”, relata a delegada. Segundo ela, o ciclo se compõe de três fases: a iminência da agressão; a cena do ultraje violento; e a lua de mel, momento em que o agressor se arrepende, diz que isso não vai mais acontecer, e a mulher acredita e perdoa. “Mas a hostilidade sempre volta a se repetir, com a probabilidade de se tornar mais grave e com intervalos menores de paz”, diz a delegada. “Daí a importância de buscar auxílio logo no início, e não quando já está no limite.”
A estudante universitária Raíssa* sofreu por dois anos com um namorado abusivo. Aos três meses de relacionamento, ele deu os primeiros sinais de agressividade, em um episódio de ciúmes. Depois, partiu para a agressão física. “Ele me segurava forte pelo braço, me empurrava no chão, me acuava na parede, me trancava dentro de casa e já chegou a bater minha cabeça no painel do carro”, conta a jovem. No início, Raíssa insistia na relação por gostar do rapaz e achava que ele iria mudar. “Depois, fiquei com medo, achando que, se terminássemos, ele iria me perseguir.” Logo após as agressões, o então namorado chegava a demonstrações extremas de romantismo, como comprar uma aliança cara e reservar uma suíte nupcial com rosas em um hotel. Mas era só o tempo passar que a cara da violência voltava. “Pouco antes de terminarmos, viajamos para a praia, e, depois de beber, ele me agrediu psicológica e fisicamente. Quase pulei da varanda naquele dia”, relembra.
A violência sexual, por sua vez, também ocorre dentro de casa, mas o crime específico de assédio acontece no ambiente profissional, conforme a Lei 10.224/2001. “Ele se configura em uma relação hierárquica, de cima para baixo, isto é, parte de um agressor em posição superior no trabalho para um subordinado”, diz a delegada Camila Müller, titular da Delegacia de Combate à Violência Sexual. Embora a conduta nem sempre chegue às vias de fato, o assédio é tipificado quando o agressor importuna ou insiste com proposta sexuais à vítima e faz ameaças implícitas sobre trabalho.
A secretária Lílian* sabe bem o que isso significa. Durante meses, ela foi assediada pelo chefe, com mensagens no celular fora do horário de trabalho e propostas subentendidas de benefícios em troca de favores sexuais. “Por várias vezes, ele me convidou para jantar e almoçar fora da empresa, com pretexto profissional, mas ao chegar lá, o assunto era sobre mim. Ficava incomodada e tentava ignorar, pois não tinha forças suficientes para denunciar ou pedir demissão: precisava do emprego para cuidar do meu filho”, recorda. Segundo ela, o medo maior era devido ao histórico do patrão na empresa, que já havia tentado se envolver com outras funcionárias, inclusive, partindo para o contato físico sem permissão. “Nos últimos meses, consegui interromper o assédio agindo de forma incisiva, dizendo que não iria mais sair com ele para restaurantes e outros lugares. Por ora, ele tem me deixado em paz.”
O caso envolvendo o chef Leandro Pimenta, ex-cozinheiro do restaurante Café com Letras, é outro exemplo típico de assédio, mas de forma ainda mais contundente. Joana*, uma mulher casada e com quatro filhos, o acusa de diversos episódios constrangedores na cozinha, ao longo de três a quatro meses. “Quando ele chegava, já ficava apreensiva. Ele me chamou várias vezes para ir ao motel, como uma vez, quando eu e outros colegas pegamos carona no fim do expediente, disse para eu descer mais adiante, para darmos uma rapidinha”, relata. Ainda segundo ela, o chef também já teria lhe dado tapa nas nádegas e esfregado o pênis ereto em suas costas. “Tentava relevar, pois precisava do trabalho.”
O ápice do abuso se tornou público após uma denúncia no Facebook (veja quadro). “Ele me mandou tirar o avental, colocou o pênis para fora, me mandou pegar nele e me agarrou pelo pescoço”, acusa Joana. O caso, a partir daí, já se enquadra como tentativa de estupro – ou até mesmo estupro, mediante interpretação da lei 12.015/09, que passou a denominar “estupro” como qualquer ato libidinoso praticado por meio de violência ou grave ameaça. “Se a abordagem for agressiva, de coação ou tocar em partes íntimas da mulher, pode-se configurar como estupro”, afirma a delegada Camila Müller, que cuida do caso, em segredo de Justiça. Depois de receber denúncia de outra funcionária, Leandro foi indiciado em dois inquéritos, um referente a assédio e a tentativa de estupro, e outro de assédio.
Os crimes de violência sexual ainda tipificam a importunação ofensiva ao pudor. “É a cantada abusiva, que passa do ponto, com contato físico, mas não tão lascivo quanto no estupro”, diferencia Camila. Nas redes sociais, uma multidão de machos enfurecidos – e também de mulheres que não se reconhecem no feminismo –, se queixa de que há exagero na criminalização, argumentando com variações da frase “agora, tudo é assédio, coisa de feminazi”. É evidente que cada caso deve ser analisado individualmente, porém, há uma generalização importante: “A diferença entre o flerte e o assédio é o consentimento”, resume a delegada. “Relações interpessoais vão continuar existindo e nada impede uma mulher de ser cantada. Mas é necessário que haja abertura, que ambas as partes consintam. O crime se configura quando um lado resiste.”
Embora denunciar ainda seja difícil, esta é a melhor forma de combater a violência de gênero. “Ao identificarmos aumento no registro de denúncias não significa, necessariamente, que o índice tem crescido. Esses dados representam que cada vez mais pessoas têm procurado ajuda”, pondera o advogado Luiz Fernando Valladão, especialista em Direito Penal. Boletins de ocorrência são feitos, prioritariamente, em delegacias especializadas, mas, se não for possível, a vítima pode ir a qualquer unidade policial ou ligar gratuita e anonimamente na Central de Atendimento à Mulher (180).
A vida pós-trauma tem impacto na saúde sexual, reprodutiva e psicológica. “Eu me sinto vulnerável. Não me alimento direito, choro, tenho tomado remédios controlados e tenho dificuldade de sair na rua. Minha vida parou”, conta Joana. “Fiquei destruída. Desenvolvi anorexia nervosa, transtorno de ansiedade, usei drogas e tive que trancar a faculdade. É como se fosse um caixão, uma cicatriz na cara”, reafirma Raíssa. É exatamente o cenário mental que descreve a psicóloga e sexóloga Cida Lopes: “Dependendo da vivência, é como se a vida da mulher parasse ali. Ela pode perder anos de sexualidade saudável, ficar presa em um passado que se torna um eterno presente.”
Reerguer-se dá trabalho e envolve toda uma reelaboração psicológica, de forma a não estender a experiência a outras pessoas e relacionamentos. “A vítima precisa sentir que tem apoio, uma estrutura protegida”, diz Cida. Em Belo Horizonte, a prefeitura disponibiliza, já há mais de duas décadas, a casa Benvinda, um centro de apoio à mulher, no Floresta. “Orientamos mulheres em situação de risco com atendimento psicossocial e jurídico, podendo acompanhá-las a sua casa para a retirada de pertences”, informa a delegada Ana Paula Balbino. Outro serviço público é a Casa Abrigo Sempre Viva, em funcionamento desde 1997 em endereço sigiloso, com o objetivo de acolher mulheres e filhos de até 16 anos sob ameaça de morte e outras violências de gênero.
Tão importante quanto remediar é prevenir. E isso se faz com a reeducação. “O agressor está inserido em uma cultura machista. Ninguém nasce com instinto para a desigualdade; é algo que vai sendo aprendido, construído, dentro da família e da sociedade”, afirma Cida Lopes. Para esse comportamento social, o Centro das Mulheres da Universidade Marshall, nos Estados Unidos, cunhou o termo “cultura do estupro”, na década de 1970. Isso não significa que todos os homens são estupradores em potencial, mas, sim, que a sociedade normatiza a violência de gênero, permite a objetificação do corpo feminino e enquadra a mulher como um ser secundário. “Isso é aprendido por meio de piadas, de conversas, da banalização da mídia, até fazer parte do inconsciente. Precisamos favorecer o contraponto, questionar estruturas e crenças tão arraigadas e tão rígidas de forma que agressores e coniventes repensem valores e preconceitos”, determina.
A punição pelas leias e a modificação via educação são processos lentos, mas que já se veem em processo. Por isso, quando novas denúncias pipocarem, não seja você, leitor, a voz que vai se opor a elas. Acredite: violência de gênero não é mimimi.
BOLETINS DE OCORRÊNCIA
l Acusado: o cantor sertanejo Victor Chaves
l Vítima: a mulher, a empresária Poliana Bagatini, grávida do segundo filho do casal
l O caso: em março, Poliana registrou boletim de ocorrência acusando o marido de agressão, afirmando que ele a teria jogado no chão e desferido chutes. Ela fez exame de corpo de delito no dia seguinte, mas o resultado foi negativo. A reviravolta aconteceu quando, depois de analisar as câmeras de segurança do condomínio, que mostram o artista empurrando a esposa, a Polícia Civil de Minas Gerais decidiu pelo indiciamento. Na sequência, o Tribunal de Justiça acatou a denúncia do Ministério Público, tornando-o réu em um processo de contravenção penal, delito que se caracteriza por agressão sem vestígios, isto é, sem machucar, conforme o artigo 21 da lei 3.688/41.
l Acusado: o médico Marcos Härter, participante do BBB
l Vítima: a namorada, Emilly Araújo, também BBB
l O caso: o relacionamento do casal, formado durante o reality show, vinha sendo marcado por situações de pressão psicológica e intimidação por parte de Marcos. Após ser indicado para um paredão, na última semana, Marcos se descontrolou, encurralou Emilly na parede, gritou, botou o dedo em seu rosto e apertou seu braço. Uma delegada do Rio viu esta e outras imagens e percebeu indícios de lesão corporal, determinando instalação de inquérito. Logo a seguir, a TV Globo decidiu eliminar o médico do programa. Já fora da casa, ele prestou depoimentos à Delegacia de Atendimento à Mulher e afirmou, em um post no Instagram, que não teve intenção de machucar a namorada.
l Acusado: o ator José Mayer
l Vítima: a figurinista Susllem Tonani
l O caso: em março, Susllem publicou um texto no blog Agora
É Que São Elas, relatando cenas de assédio do ator nos bastidores da novela A Lei do Amor. O ápice foi quando ele colocou a mão em sua genitália e a chamou de “vaca” em público. Mayer negou as acusações, mas, depois, publicou uma carta aberta pedindo desculpas ao que chamou de “erro”. A carta veio a público depois de atrizes e funcionárias da Globo postarem fotos vestindo camisetas com a frase “Mexeu com uma, mexeu com todas”. A emissora publicou texto se solidarizando com Susllem e afastou o ator das produções por tempo indeterminado. Na última semana, a 32ª Delegacia Policial do Rio de Janeiro convocou a vítima para depor. Há possibilidades de Mayer ser indiciado com base no artigo 13 do Código Penal.
l Acusado: o chef Leandro Pimenta
l Vítima: auxiliar de cozinha
não identificada
l O caso: em janeiro, a mulher afirma ter sido chamada ao carro de Leandro para receber um adiantamento de salário pelo trabalho no Café com Letras do CCBB-BH. Dentro do veículo, o chef teria exposto sua genitália e tentado colocar as mãos da vítima nela, ao que ela se negou e fugiu. A mulher ainda relata que foi assediada várias vezes com cantadas obscenas e tapas nas nádegas, o que teria sido confirmado pela câmera de segurança. Na última semana, a Polícia Civil indiciou Leandro por tentativa de estupro e assédio sexual. Em depoimento, ele negou o ocorrido e disse que não passou de “brincadeira”. Nas redes sociais, o restaurante afirma ter demitido o chef 48 horas após a denúncia, antes de o caso se tornar público.
* NOMES FICTÍCIOS PARA PRESERVAR A IDENTIDADE