Instalações da artista japonesa parecem feitas sob medida para postar nas redes sociais
Foto:Daniel Mansur
Recém-inaugurada no Inhotim, Galeria Yayoi Kusama tensiona os limites da relação entre a obra de arte e o espectador.
Yayoi Kusama, uma das artistas mais pulsantes do mundo, fincou raízes no Inhotim. O museu de arte contemporânea, em Brumadinho, inaugurou um pavilhão totalmente dedicado a ela, a 20ª galeria permanente. O novo espaço integra duas instalações imersivas de grande escala, mas não no conceito “imersivo” das exposições que caçam níqueis nos estacionamentos de shoppings. Aqui, o mergulho acontece dentro da arte em estado bruto, com significantes mais sutis que a atual onda de megaprojeções animadas de telas e afrescos consagrados. A relação, porém, pode ser percebida: ambas são magnéticas, essencialmente pop e de apelo “instagramável”.
Logo na entrada da galeria, a obra “I’m here, but nothing” (2000) – traduzida, de forma não literal, como “Eu estou aqui, mas nada [mudou]” – encena um ambiente doméstico, com móveis como sofá, mesa de jantar, estante e televisão. A dissonância são os milhares de adesivos fluores espalhados do teto ao chão e nos objetos, que brilham ao serem acionados por luz negra. Na sequência, “Aftermath of obliteration of eternity” (2009) – “Consequências da obliteração da eternidade” – cria uma sala de espelhos iluminada por centenas de lanternas que acendem e apagam. O jogo de reflexos remete ao Tooro Nagashi, ritual tradicional no Japão, dedicado à honra dos ancestrais falecidos, e integra a série das “infinity rooms” (“salas infinitas”), criada pela artista nos anos 1960.
As duas instalações enveredam pelo conceito de auto-obliteração, no sentido de “dissolver” o espectador em uma experiência sensorial e efêmera – tanto no ambiente reconhecível, retratado pela mobília doméstica; quanto no desconhecido, a iluminação de apelo místico. “Yayoi Kusama investiga a auto-obliteração em seu trabalho há muitas décadas. A ideia é pensar a dissolução do indivíduo nesses espaços e na sua visão do mundo, borrando os limites do que é obra, espaço, corpo e paisagem e buscando uma comunhão com o universal”, descreve Douglas Freitas, curador do Inhotim desde 2021.
Além deste diálogo entre si, as obras se conectam com “Narcissus Garden” (1966/2009), trabalho da artista exposto no Inhotim desde 2009, com 750 esferas de aço inoxidável sobre um espelho d’água, que refletem o entorno – vem daí a referência a Narciso. “Juntas, as três instalações apresentam um panorama de como Yayoi Kusama lida com as escalas dos espaços: a paisagem, o ambiente doméstico e, por último, o cosmo imenso, em um espaço de experiência individual”, observa Freitas.
Kusama, vale contextualizar, é uma artista pop nonagenária. Nascida em 1929, na província de Nagano, no Japão, mudou-se para os Estados Unidos nos anos 1950, na fuga de conflitos familiares que obstruíam a vocação artística. Ainda nesta década, passou a ser conhecida a partir de suas exposições em Nova Iorque, ao lado de ninguém menos que Andy Warhol, o pai da pop art, com pinturas marcadas por infinitos pontos monocromáticos.
Curiosamente, esse padrão marcou sua saúde mental na infância, período em que ela sofria de alucinações envolvendo círculos e pontilhados. Atualmente vivendo em Tóquio, a artista é reconhecida mundialmente por explorar múltiplos dispositivos e linguagens. Seu repertório criativo abrange desde pinturas, esculturas, filmes, performances e happenings, além de uma parceria establishment com a grife Louis Vuitton, a exemplo de uma escultura na fachada da maison da Champs Élysèe, em Paris. A chegada de Kusama ao Inhotim resulta de um processo de longo prazo, de aproximadamente 15 anos. O instituto adquiriu as obras em 2008 e 2009 e, somente em 2016, deu início ao projeto da galeria temática.
Prevista inicialmente para 2020, a abertura foi adiada devido à pandemia. Ela quebra um hiato de oito anos: até então, o pavilhão mais recente havia sido inaugurado em novembro de 2015, para abrigar os trabalhos da fotógrafa Claudia Andujar, conhecida principalmente pelo seu trabalho documental sobre a cultura e a vida dos ianomâmis. A montagem das obras foi acompanhada pela equipe de Kusama, em Tóquio. “Envolvemos diversos agentes e fizemos contato com o estúdio da artista para garantir a melhor experiência possível para o público, além da melhor maneira de expor as obras e de traduzir sua concepção”, diz Freitas.
Em aço corten, a galeria é assinada pelos arquitetos belo-horizontinos Fernando Maculan e Maria Paz – em 2023, Maculan recebeu o prêmio mundial ArchDaily, na categoria “Casa do Ano”, pela casa do artista Kdu dos Anjos, no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte. Mais que um pavilhão, o espaço valoriza o convívio, com amplo espaço de espera e permanência – são permitidas apenas oito pessoas por vez dentro das obras e, no atual momento de filas, com limite de três minutos.
O paisagismo, por sua vez, traça um caminho sinuoso feito de pedras, com um jardim tropical com mais de 4 mil bromélias. O projeto foi realizado por Juliano Borin, curador botânico do Inhotim, e Geraldo Farias, da equipe do Jardim Botânico do instituto, com alguns pitacos e contribuições de Bernardo Paz, o fundador do museu.
A chegada da nova galeria também marca uma dança das cadeiras no Inhotim. Em maio, a então diretora artística do museu, a Venezuela na Julieta González deixou o cargo, que ocupava desde o fim de 2021. O instituto não deu justificativas e anunciou o retorno de Júlia Rebouças, que havia trabalhado na curadoria entre 2007 e 2015. Doutora em artes visuais pela UFMG, Júlia integrou a equipe curatorial da 32ª Bienal de São Paulo, em 2016; e atuou como diretora artística da Oficina Francisco Brennand, no Recife, até ser convocada a regressar.