Fernando M. Torres

Dançar não tem idade

Casulo em Cena: leitura coletiva e rodas de conversas para formular o espetáculo

FOTOS:Gabriela Monteiro

 

Mulheres acima de 50 anos rompem convenções e matriculam-se em aulas de balé clássico e danças contemporâneas provando que nunca é tarde para o primeiro plié

 

          A atriz belo-horizontina Inês Peixoto não esconde a maturidade ao cantar e dançar na abertura do espetáculo “Cabaré Coragem”, montagem mais recente do Grupo Galpão, em cartaz em São Paulo. Sua personagem, Singapura, integra uma trupe cujo nome faz referência à “Mãe Coragem”, obra icônica do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, de 1939. Entre outros pontos, a peça questiona, justamente, o “tempo de validade” de artistas “maduros”, em uma sociedade que, cada vez mais, valoriza a juventude. “Interpretamos um elenco explorado por uma mulher que diz que ninguém quer trabalhar com pessoas mais velhas”, contextualiza.

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Inês Peixoto: “É uma forma muito agradável de trabalhar o cérebro e o corpo

        O roteiro converge na vida da própria Inês Peixoto. Aos 63 anos e desafiando convenções, ela encontra na dança um dos principais pilares para manter-se potente e ativa. Desde 2022, ela passou a fazer aulas de dança contemporânea, juntamente com outras mulheres acima de 50 anos. “Sempre gostei de dançar, tanto por conta do suporte corporal no meu trabalho com o teatro, como pelo desenvolvimento pessoal. Já fiz aulas de sapateado e dança do ventre e balé contemporâneo. Agora, tem um gosto diferente. É um tipo de autocuidado, uma forma muito agradável de trabalhar o cérebro e o corpo com novas coreografias a cada mês, além de favorecer a sororidade entre mulheres de idades semelhantes”, conta.

       Inês conta que faz aulas pelo menos duas vezes por semana, sempre pela manhã. “Às vezes, apresentei com o Galpão na noite anterior e dormi tarde: acordo com vontade de ir e não falto. Saio de lá como se tivesse tomado vitamina de alegria e bem-estar.” A nova rotina a ajudou, inclusive, a compor a personagem de “Cabaré Coragem” – além, claro, da preparação corporal e coreógrafa feita pelos profissionais do Galpão. “Dançar passou a ser uma conciliação de prazer e necessidade. Faço porque gosto, mas também é uma ferramenta para que eu esteja bem com o meu trabalho. O corpo pede renovação e consciência. Temos que mudar a chave de que a dança não é algo para quem está envelhecendo. É nessa idade que precisamos nos movimentar ainda mais”, defende.

         Inês Peixoto não está sozinha nesse pensamento. Nos últimos anos, muitas mulheres adultas têm procurado a experiência de, pela primeira vez, matricular-se em estúdios de dança. A maioria delas já passou dos 50 anos e encara a atividade como um exercício físico. Porém, não é apenas isso: há um desejo de expressão artística, de realizar ou resgatar sonhos engolidos pela vida. Um dos exemplos dessa busca é Renata Araújo, cujo perfil você pode conferir na página 42 desta edição.

         Com quase três décadas de experiência nos palcos, Carol Saletti é uma das caras desse fluxo. A psicóloga e professora de dança é proprietária do estúdio Casulo – Espaço e Tempo de Dança, voltado a mulheres 50+ que têm o sonho de aprender a danças. A primeira turma, em 2017, reuniu 16 pessoas. Hoje, a escola tem 320 alunas matriculadas, divididas em 38 turmas: pelo menos 80% delas têm mais de 50 anos, e a mais velha acaba de completar 85. “É um grupo muito heterogêneo, que descobriu a dança, sobretudo, depois da pandemia. Atendemos muitas mulheres em processo de aposentadoria, que estão em busca de si mesmas, não apenas no campo físico e artístico, mas também em todos os setores da vida”, diz Carol, que, além de coreógrafa, é especialista em psicomotricidade e mestra em psicologia da saúde e do desenvolvimento.

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Carol Saletti: “Nosso objetivo é ser um espaço de transformação”

          Em metamorfose, o Casulo oferece vários tipos de aulas, desde balé até danças populares brasileiras e trilhas sonoras de filmes. A sede fica no bairro Santo Antônio. O grupo também tem uma sala no Centro Cultural Sesiminas, no Santa Efigênia, onde reúne 50 alunas; e planeja inaugurar, ainda este ano, uma segunda unidade, no Sion, com foco em projetos sociais. Além das aulas regulares duas vezes por semana, Carol promove encontros gratuitos mensais em locais públicos de Belo Horizonte, como as praças Carlos Chagas (Assembleia) e JK, e clubes de leitura e grupos terapêuticos.

          O carro-chefe das aulas é o método Wake-Up, uma abordagem autoral pensada para as transformações do corpo feminino ao longo dos anos. “Nosso objetivo não é apenas dançar, e sim ser um espaço de transformação pessoal e envelhecimento saudável. No WakeUp, levamos em consideração que o tempo provoca inevitavelmente, rigidez nos movimentos e flacidez na pele e nos músculos. Por isso, trabalhamos, primeiro, a atividade aeróbica, com aquecimento, alongamento e reforço das cadeias musculares. Depois, seguimos com as sequências de dança de forma consciente, em ritmos que vão desde a MPB até músicas estrangeiras”, detalha a professora.

         A descrição pode lembrar uma dança fitness, como a das academias de ginástica e musculação, mas não é o caso. Uma vez por ano, Carol organiza o Casulo em Cena, com apresentações ao público. Ao longo de 2023, as alunas leram coletivamente o livro Água fresca para as flores, da escritora francesa Valérie Perrin, e livros da geriatra paliativista Ana Cláudia Quintana Arantes, como “Histórias lindas de morrer” e “Para a vida toda valer a pena” , que consideram a finitude da vida como um processo natural.

        Depois de rodas de discussões e conversas sobre a experiência com o envelhecimento, a comunidade Casulo, com a participação ativa de mais de 180 alunas, organizou e exibiu o espetáculo É vida, no Teatro Sesiminas, tendo as obras literárias como referência para a escolha das músicas, dos figurinos e das coreografias. Os mais de 20 números coreografados, exibidos em duas sessões, incluíram canções de Gonzaguinha, Sidney Magal, Raul Seixas, as Frenéticas, dentre outros, e tiveram a participação da cantora Celinha Braga e do bloco carnavalesco Mimosas Borboletas.

           Foi uma experiência inesquecível para a farmacêutica epidemiologista Simone de Castro, de 56 anos. Com flores no cabelo e vestida com trajes tehuanas, ela subiu ao palco juntamente com outras mulheres para uma interpretação folclórica inspirada no Día de los Muertos. “A Simone de 30 anos nunca imaginou que a Simone de 56 faria isso.

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Simone Castro: “A Simone de 30 anos nunca imaginou que a Simone de 56 faria isso”

         A proposta era dançar a vida no Dia dos Mortos, cortando todas as amarras, de idade, corpo e estereótipos, dentro de um processo construído coletivamente. Foi uma apresentação emocionante, em que cada um trouxe consigo sua própria história de vida”, conta. Ela também participou do grupo que dançou “Costura da Vida”, música de Sérgio Pererê que, simbolicamente, fala sobre “compreender a costura da vida”.

          Simone diz ter encontrado na dança uma nova jornada de autoconhecimento e liberdade, após se aproximar da aposentadoria. Sua trajetória no Casulo começou há dois anos, quando viu um post no Instagram e se sentiu atraída pela mensagem inclusiva de que a dança é para todos. Desde então, ela frequenta as aulas de Wake-Up duas vezes por semana. “A dança se transformou em uma forma de expressão e libertação, uma maneira de construir laços afetivos e compartilhar vivências, de explorar minha criatividade e superar limites. E isso é verdadeiro para muitas mulheres, que passam a entender que não existem amarras como idade e tipo de corpo: a dança é para qualquer uma de nós”, expressa. A bailarina e fisioterapeuta Meiry Isméria de Paula também acredita no potencial transformador da dança.

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Meiry Isméria: com foco no balé clássico, professora já tem cerca de 80 alunas

        Ela é fundadora do projeto Reabilitação e Ballet, inicialmente concebido como uma ação social para mulheres 60+. “Iniciei esse trabalho com apenas seis mulheres, no Colégio Arnaldo, em outubro de 2018. Mas, como era gratuito, tivemos grande demanda e expandimos rapidamente”, recorda.

        Atualmente, a professora reúne em torno de 80 alunas, divididas em sete turmas, na academia Ponto da Dança, no bairro Lourdes. Aproximadamente 85% delas têm mais de 60 anos; o restante passeia pela faixa dos 50, e a mais idosa completa 80 anos em 2024.

        Com foco no balé clássico, Meiry explica que seu método de ensino prioriza o trabalho de marcha – sequência de movimentos de equilíbrio em que a bailarina apoia o pé no chão, dobra o joelho, sustenta o calcanhar e, depois, pisa –, fundamentais para o corpo maduro.

       Também inclui passos do balé contemporâneo, para tornar as aulas mais dinâmicas e desafiadoras. Assim como o Casulo, o projeto vai além das aulas regulares e promove apresentações em locais como o Teatro do Centro Cultural da Unimed e o Teatro do Colégio Arnaldo, com público médio de 600 pessoas. “É a oportunidade para as alunas mostrarem seu talento e dedicação. No último ano, apresentamos trechos da valsa Danúbio Azul, de Strauss, e do balé O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky. Este ano, estamos ensaiando a Valsa das Flores, de O Quebra-Nozes, de Tchaikovsky”, relata.

         Valquíria Lacerda, 75 anos, restauradora e massoterapeuta, iniciou as aulas de balé há dois anos – com algumas décadas de “atraso”. “Desde criança, tive vontade de dançar balé, mas acabei seguindo com outras atividades. Já adulta, trabalhei como modelo em São Paulo e comecei a fazer outras danças, mais contemporâneas, pois achava que não tinha mais corpo e jeito para ser bailarina”, conta. A percepção, porém, mostrou- -se equivocada, com o início das aulas práticas, já na maturidade.

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Valquíria Lacerda: “A camaradagem e o apoio mútuo são muito fortes”

       Valquíria reconhece, sim, os desafios próprios à da idade, como manter o equilíbrio e memorizar os passos. Porém, ela encontra na dança o meio para fortalecer a concentração e a movimentação corporal. “A camaradagem e o apoio mútuo entre as colegas são muito fortes. Já passamos do tempo das rivalidades; queremos caminhar juntas”, diz .

        Para Valquíria, o balé é uma fonte de alegria, vitalidade e conexão humana, além de ser uma forma de expressão artística. Um dos seus momentos preferidos com a dança são as apresentações coletivas, quando ele se sente mais confiante e, de fato, uma bailarina. “Confesso que, no início, tive um pouco de resistência a me apresentar, achei que não conseguiria realizar as coreografias. Mas, depois que decidi, fui uma das alunas mais empolgadas. Dançar envolve uma certa magia.”

         Com essa perspectiva, Valquíria ampliou a dança para um trabalho voluntário pessoal: criou o grupo Xicatanga, formado por 17 mulheres, com apresentações semanais no Centro Educacional Professor Estevão Pinto, no bairro Serra. “É um show performático, de 45 minutos, com músicas e danças de diversos países, muita mímica e a participação de um mágico e um músico. Sempre que possível, levamos a montagem para hospitais e casas de repouso e acolhimento, especialmente para idosos e pessoas em tratamento de dependência química”, conta.