Gustavo Penna: “Construir é um gesto que abriga, transforma”
Conexões com a memória e com o coletivo marcam a trajetória do arquiteto Gustavo Penna, refletida de forma comovente no recém-inaugurado Memorial de Brumadinho
A generosidade age como fio condutor em toda a trajetória de Gustavo Penna. E isso não é inconsciente. Desde os primeiros traços, ele não pensa a arquitetura como um ofício que se impõe, mas sim como um saber que se volta para o outro, para a coletividade, em busca de soluções que dialoguem com o entorno já exis tente e a criação de espaços que favoreçam o pertencimento. “Construir é um ato de entrega, uma forma de escuta, um gesto que abriga, transforma e inspira”, diz o arquiteto mineiro, em entrevista à revista Viver Brasil.
O trabalho de um dos principais nomes da arquitetura contemporânea no país transcende a construção de edifícios: revela uma profunda conexão com a memória. A começar de seu próprio escritório, o Gustavo Penna Arquiteto e Associados (GPA&A), instalado em um casarão centenário em estilo eclético na avenida Álvares Cabral, em Belo Horizonte, projetado por Edgar Nascentes Coelho, um dos responsáveis pela construção da capital mineira.
Seus ancestrais moraram ali: o bisavô, os avós maternos e a mãe, Miriam, que só se mudou para se casar com o engenheiro civil Roberto Penna. Foi neste segundo endereço que Gustavo nasceu, em abril de 1950. O menino, porém, explorou cada canto da casa em chão de taco parquet ao lado dos 14 primos. Adolescente, herdou um cômodo para estudar para o vestibular em arquitetura da UFMG, onde se formou aos 23 anos e lecionou por três décadas.
Gustavo Penna podia ter seguido o caminho da política ou das letras, dado o DNA do avô, o advogado, jornalista e poeta José Oswaldo de Araújo, prefeito de Belo Horizonte entre 1938 e 1940, cofundador do jornal Diário de Minas, imortal da Academia Mineira de Letras – e avô do prefeito de Ouro Preto, Angelo Oswaldo, um dos primos. No entanto, talvez até mesmo pelo apelo do casarão onde cresceu, optou por essa arquitetura que busca revelar a essência de cada lugar, de cada história. “A sensação de ‘pertencimento’ surge quando o espaço não é um elemento estranho, mas um prolongamento natural da memória coletiva.
Se o espaço respeita suas origens e dialoga com quem o habita, ele deixa de ser apenas um edifício e se torna parte da identidade do lugar”, exprime Gustavo. Inaugurado em janeiro, o Memorial Bru madinho talvez seja um dos exemplos mais sensíveis e respeitosos à singularidade do contexto. O espaço, projetado para homenagear as 272 vítimas do rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em 2019, busca materializar a memória das vítimas e, ao mesmo tempo, oferecer um espaço de reflexão para toda a sociedade.
“Foi um desafio encontrar o delicado equilíbrio entre dor e esperança; denúncia e acolhimento. Cada escolha arquitetônica foi pensada para respeitar a profundidade do tema e para criar um lugar de introspecção e comunhão, onde a paisagem e a materialidade da obra contam uma história que jamais deve ser esquecida”, conta Penna. Um pavilhão de concreto misturado à terra vermelha e peças metálicas retiradas dos escombros recepciona o visitante – o ambiente interno tem apenas algumas frestas de luz natural e traduz a brutalidade do acidente.
Na sequência, o monumento com os nomes gravados das vítimas atravessa o terreno em uma grande linha horizontal suspensa. Por fim, o mirante, flutuante sobre um lago, descortina a área atingida pela lama. “Por sua carga simbólica, o memorial reafirma a arquitetura como instrumento de acolhimento e resiliência. Ele não busca esconder a tragédia, mas ressignificá-la, criando um espaço de introspecção, silêncio e respeito”, descreve o arquiteto. Ipês-amarelos integram o paisagismo: re presentam a renovação da vida, quando floridos; e a saudade, quando secos e com as flores no chão.
Visto em transversal, boa parte do legado de Penna é marcado por trabalhos que dialogam com a memória, como uma soma de tempos. O Museu de Sant’Ana, inaugurado em 2014, na antiga Ca deia Pública de Tiradentes (MG), exemplifica essa dedicação em reverenciar o passado e inventar o presente: os traços da casa tricentenária permanecem praticamente intocados, soberanos, enquanto o interior adquire novas funções de contemplação, em um perfeito equilíbrio entre preservação e renovação.
“O projeto revela a força da ressignificação dos espaços históricos e o poder que eles guardam.” O Museu de Congonhas, na cidade dos 12 profetas de Aleijadinho, segue o mesmo princípio, mas sem tirar o protagonismo do secular Santuário do Bom Jesus de Matosinhos. Aberto ao público em 2015, o centro cultural apresenta uma longa base de edificação em pedra, com o uso de matérias-primas da região , e paredes caiadas,pintadas com a mesma tinta mineral utilizada para a restauração das capelas e da basílica.
“A proposta foi respeitar a história sem engessá-la. É um projeto atemporal, embora seja testemunha de seu tempo e tenha orgulho de afirmar poesia, respeito, equilíbrio”, elabora Gustavo Penna. O interior do museu tem espaços fluidos e limpos. “É o próprio barroco traduzido pela contemporaneidade.”
A interlocução entre passado e futuro se observa também em Belo Horizonte. Subindo a rua da Bahia, o edifício anexo da Academia Mineira de Letras, inaugurado em 1994, conversa com o estilo neoclássico do Palacete Borges da Costa, da década de 1920. Mais acima, já próximo à avenida do Contorno, o contemporâneo Edifício Bahia, de uso residencial desde 2021, compartilha o condomínio com a Casa Rosada, casarão tombado de 1929, propriedade que pertencia à família Gomes Nogueira.
Curiosamente, ambos são obras originais de Luiz Signorelli, um dos arquitetos mais proeminentes dos primeiros anos da capital mineira. “O patrimônio histórico não pode ser encarado como uma peça de museu intocável – ele precisa ser vivido, reinterpretado. A arquitetura deve ser um fio condutor entre passado e futuro, valorizando a memória, mas garantindo que ela continue pulsante.” Originalmente concebido como um ícone modernista, o centro cultural Sesi Lab, em Brasília, demonstra a potência da arquitetura como espaço de experimentação e aprendizado.
O projeto, inaugurado em 2022, promove a requalificação do edifício Touring Club, projetado por Oscar Niemeyer no centro do Plano Piloto. Reconhecido como bem cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o edifício passou por um cuidadoso processo de restauração, que visou resgatar sua essência e integrá-lo ao contexto urbano contemporâneo, após anos de descaracterização e abandono.
Nesse trabalho, Penna também optou por recuperar as características originais do imóvel, incluindo a volumetria, as fachadas e a configuração da cobertura, com seus pilares e vigas. Matéria-prima da arquitetura, a luz natural ocupa um papel essencial na assinatura de Penna. “Ela modela os espaços, desenha sombras, revela texturas, imprime uma atmosfera única em cada projeto e transforma a percepção do tempo dentro de um edifício. Traz conforto, dinamismo e reforça a conexão entre interior e exterior.
Trabalhar com a luz é respeitar o ritmo da natureza e potencializar a experiência dos espaços de forma sensível e poética”, diz ele. Exemplo disso é o armazém da empresa Carmo Coffees, em Três Corações (MG), inaugurado em 2021, às margens da BR-381.
Nele, uma estrutura no formato de grão de café pousa como um invasor translúcido na fachada horizontal, transformando-se em uma claraboia. O projeto foi vitorioso em três dos maiores prêmios do setor no mundo: ArchDaily Building of the Year, IF Design Awards e Architizer A+Awards. O arquiteto aliás, coleciona vários prêmios mundiais, dentre eles: International Architecture Award (2006), pela casa particular Manacás, em Nova Lima; World Architecture Festival (2014), pelo projeto do Monumento à Liberdade de Imprensa, em Brasília; e Prix Versailles (2018), pela fábrica da Cervejaria Wäls, em Belo Horizonte. Internacionalmente, a propósito, os traços de Gustavo Penna marcam as exposições universais, como as de Milão (2015) e Dubai (2020), além da 7ª Bienal Internacional de Arquitetura, em São Paulo (2015).
Com seis livros publicados, seus projetos já foram exibidos nos principais sites, re vistas e livros de arquitetura e design do mundo. “Depois de cinco décadas de trabalho, o que me move, hoje, é a curiosidade, a vontade de entender cada projeto como um novo desafio, uma nova possibilidade de descobrir e de transformar. A arquitetura é uma eterna construção, e considero que, ao longo do tempo, consegui ter uma evolução do olhar, a compreensão cada vez mais profunda do impacto que a arquitetura pode ter na trans formação das cidades, capaz de criar conexões profundas entre pessoas, lugares e tempos”, analisa Penna.
Ele capta com entusiasmo o processo de reurbanização e revisão de espaços públicos no Brasil, mas aponta preocupação. “Sem dúvida, avançamos na compreensão de que as cidades precisam ser mais humanas, mais acessíveis e mais sus tentáveis. No entanto, o desafio está na execução: muitas vezes, boas intenções não se traduzem em políticas eficientes. É fundamental que essas transformações sejam guiadas por um pensa mento integrado, que priorize não apenas a estética, mas a funcionalidade, a permanência, a inclusão e a apropriação dos espaços pela comunidade ao longo do tempo”, pondera.
Para Penna, o Brasil tem potencial para expressar essa diversidade, e há muitos exemplos que conseguem traduzir a complexidade de forma brilhante. Ele reconhece, contudo, que ainda há desafios estruturais que limitam a construção de cidades verdadeiramente inclusivas, tais como a segregação urbana, a falta de planejamento e a precariedade de investimentos em infraestrutura. “O caminho, mais uma vez, está na arquitetura que escuta, que entende as múltiplas camadas do país e que propõe soluções acessíveis, democráticas e conectadas à realidade de cada lugar. A arquitetura pode – e deve – ser um instrumento de inclusão e transformação”, conclui.
DEPOIMENTOS
“Como professor, o Gustavo sempre falou da emoção, da poesia do desenho. Ele dizia coisas sutis: a arquitetura do vazio, a elegância, o amor e a emoção ao desenhar. Ao fazer essa construção poética do espaço, ele é uma referência para mim”.
Du Leal, arquiteta e urbanista, ex-aluna de Gustavo Penna
“Aprendo com o Gustavo desde sempre. A convivência com ele torna minha vida mais rica e mais criativa.”
Flávio Carsalade, arquiteto
“O Gustavo é meu amigo há cinco décadas. É um amigo alegre, generoso, gentil e que conseguiu criar um caminho próprio na arquitetura, por meio de sua ousadia e criatividade.”
Jô Vasconcelos, arquiteta
“O Gustavo vê muito com o olho do cliente, em busca de soluções para a arquitetura. A proporção e o alinhamento também são muito importantes em sua assinatura. Tudo tem uma razão de ser.”
Noberto Bambozzi, arquiteto
“Visitei o Memorial de Brumadinho, um dos mais belos e comoventes projetos que vivi nos últimos anos. O espaço transcende os mortos dessa tragédia e convida as pessoas a refletir sobre as vítimas das tragédias humanas e ambientais. Seu autor é de uma sensibilidade rara.”
Milton Hatoum, escritor