Gastronomia

UMA CASA E MUITOS CONTOS

vb ed297 novembro 25b capa uma casa e muitos contos

Na memorável “mesa da diretoria”: Juvenal Junot, Angela Guimarães, Paulo Coelho, Márcio Barbosa, Ricardo Carlini e Charles Castro

 

Tradicional restaurante na Savassi completa 50 anos com muitas histórias para relembrar

 

São 50 anos de histórias. Sim, precisam ser referenciadas no plural as incontáveis presenças de personalidades do teatro, dança, música, literatura, cinema, artes plásticas, jornalismo e política que passaram, e ainda passam pela Casa dos Contos. Assim como a Cantina do Lucas, no edifício Maletta, o número 1065 da rua rio Grande do Norte, na Savassi, virou palco de debates políticos e culturais em meio a filés surprise (carro-chefe da casa), picatas à borgonhesa, parmegianas, steak au poivre, filé à cubana e mineiríssimos tutu com lombo e tropeiro, entre tantas outras delícias regadas ao chope e a breja gelada.

O nome, dado pelo seu fundador, o chef Memmo Biadi, inicialmente, remetia à casa que, em Ouro Preto, sedia o museu que abrigou fundição e cunhagem de moedas, e já foi sede da administração da capitania de Minas Gerais. A “nossa” Casa dos Contos, da “nossa” BH, comemorou suas bodas de ouro em 13 de outubro. E os contos são outros. O restaurante, que já ocupou um imóvel na rua Santa Rita Durão, viveu os anos da ditadura e, quando a campanha das Diretas ganhou às ruas em todo o país, foi palco de grandes debates, conforme lembra o diretor teatral Pedro Paulo Cava.

vb ed297 novembro 25b 1 uma casa e muitos contos

“Depois do Memmo, a Nely Rosa, sempre aglutinadora, comprou a Casa dos Contos. Foi uma época marcante. Depois dos espetáculos, íamos todos para o restaurante. Fazíamos parte de uma geração feliz, com o fim da ditadura. Em 1984, o Edmar Roque (falecido proprietário) comprou da Nely e sempre recebia o elenco com uma massa deliciosa para comemorar uma peça que estava estreando. Éramos a geração Bar Esperança, o último que fecha”, lembra o dramaturgo, citando o filme dirigido por Hugo Carvana, que remetia à história de uma geração de boêmios, intelectuais e anônimos e suas frustrações, amarguras e alegrias compartilhadas em um bar de Ipanema na década de 1980.

“Era um tempo em que não existia celular, mas sabíamos onde todos nos encontraríamos”, ressalta o jornalista Juvenal Junot, dono de outra casa noturna que fazia a alegria da galera com o disco music nos anos 1990, o Heaven, mas que nunca deixou de habitar a mesa da “diretoria”, da Casa dos Contos. “O Edmar Roque soube captar muito bem o espírito da Casa dos Contos. Ele já comandava a Cantina do Lucas e foi um movimento quase que orgânico. O pessoal que frequentava o Lucas também passou a frequentar ou até migrar, em parte, para os Contos.

O público, o mesmo, o cardápio também”, observa o médico Charles Carvalho Castro, frequentador desde sempre. Ali, havia mesas cativas. “PSDB, PT, jorna listas e artistas viviam harmoniosamente”, emenda Cava. “Eram grandes papos e muitas histórias. Reunia gente do Goethe Institut, da Aliança Francesa”, refaz a memória, o teatrólogo. O supervisor dos dois restaurantes, Contos e Lucas, Antônio de Aguiar Mourão, conta que a casa teve papel preponderante na história da nossa democracia.

A Casa dos Contos abrigou muitos encontros do movimento Diretas já, reforça. “Para se ter uma ideia, pouca gente sabe ou se lembra do jantar de adesão ao nome de Tancredo Neves à candidatura à Presidência da República, que foi na Casa dos Contos”, lembra Mourão. Na mesa da “diretoria”, alguns nomes que já partiram, como a produtora cultural, então presidente da Associação Mineira de Produtores de Artes Cênicas (Amparc) Claide Gosling e o ator e diretor Elvécio Guimarães.

vb ed297 novembro 25b 2 uma casa e muitos contos

Eles tinham uma mesa cativa na Casa dos Contos, que foi só crescendo, à medida que os laços de amizade foram fortalecendo nas noites pós-espetáculos. A mesa batizada de “diretoria”, foi agregando outros nomes ao longo dos anos, como o professor de história Ricardo Wagner, carinhosamente chamado “Zé do Caixão”, os jornalistas Juvenal Junot, Flamínio Fantini, José Eduardo Gonçalves, o casal Lauro Diniz e Danielle, Mozart e Luiz Fazzito, Ricardo Carlini, o artista plástico Paulo Coelho, o psiquiatra Antônio Simoni, Vanda Ribeiro, o cerimonialista Márcio Barbosa, Gláucia Rodrigues, Geraldo Claret, José Márcio Valle, o cientista político Domingos Giroletti, o casal Eurípedes Pallazzo e Telma, entre tantos outros.

“Fazíamos parte da vice-diretoria”, brinca o cerimonialista Márcio Barbosa, frequentador da Casa dos Contos desde 1979. “Um dia, a Claide Gosling resolveu sentar-se à nossa mesa, aí virou tudo uma mesa só para sempre”, diverte-se. Foi, então, que os garçons passaram a ter que juntar as mesas 4 e 5 do restaurante para essa turma toda encontrar e debater o cotidiano. “A Claide era a locomotiva. Ela chegava e pronto, a alegria estava instaurada. Foram mui tas as vezes em que fechamos a casa. Uma delas, o síndico do prédio vizinho ligou para a Casa dos Contos para reclamar, segundo ele, do excesso de bom humor ao ouvir nossas gargalhadas.

O saudoso Edmar Roque nos autorizou a ficar dentro depois que os garçons iam embora, abríamos o freezer e tirávamos as cervejas. E, como combinado, anotávamos e, no dia seguinte ou no próximo encontro, acertávamos a conta”, recorda Márcio Barbosa. Nas artes plásticas, eram muitos os encontros e artistas frequentadores. “O Edmar Roque fez uma parceria com o Palhano Júnior para fazer uma curadoria e sempre teve exposição. Alguns artistas que foram lançados e outros já conhecidos tanto em mostras individuais como coletivas”, aponta Barbosa, que lembra de nomes como Maria Emília e Enezila Moura Campos, Heleno Nunes.

O artista plástico Paulo Coelho, membro cativo da “diretoria”, lembra dos nomes do teatro e cinema que passaram pela Casa dos Contos, como Renata Sorrah, depois de uma temporada de Shirley Valentine. “Sentou-se à nossa mesa, como a Maria Zilda também, em outra ocasião”, recorda. Hoje, à frente da Casa dos Contos, Maria Leonor Xavier Cunha Roque, uma das filhas do Edmar Roque, conta com seu braço direito, o supervisor das duas casas, Contos e Lucas, Antônio Mourão. Ele foi gerente dos dois restaurantes onde trabalha desde janeiro de 1988 e tem muitas das histórias para contar, como o dia em que Gilberto Gil e Caetano Veloso chegaram com a casa fechando. “Eram duas da madrugada. Já estávamos subindo as cadeiras, desligando as luzes e os dois chegaram depois de um show. Estavam famintos.

Tratamos de descer as cadeiras, fazer as honras da casa, acender as luzes e ligar o fogão”, recorda. O mesmo episódio já foi vivido com Martinho da Vila. Mourão lembra que, nesses 50 anos, a Casa dos Contos sobreviveu às crises econômicas, inflações disparadas, depois pandemia, onde cresceu o delivery. Nesse turbilhão de eventos, só tem a comemorar. “Recebemos nomes de peso ao longo dessas décadas, como Paulo Autran, Fernanda Montenegro, Marisa Orth, Vera Holtz, entre tantos”, celebra o supervisor da casa cinquentenária. “A casa – reforça Mourão – também vem, ao longo dos anos, sendo o espaço para exposições de artistas de renome, como Yara Tupinambá, Selma Weismann, Leonora Weismann e tantos outros”, destaca.

vb ed297 novembro 25b 3 uma casa e muitos contos

Para celebrar o cinquentenário, a atual curadora Fátima Miranda organizou exposição comemorativa das bodas em outubro último. A coletiva trouxe obras inspiradas na Casa dos Contos, trabalhadas sobre telas em formato de tábua de madeira usada para fatiar alimentos na cozinha. Participam da mostra os artistas Ângela Cota, Ana Verona, Andréa Vasconcelos, Carmelita Henriqueta, Carol Verona, Cleusa Martins, Demogolet, Fátima Miranda, Lenice Pitanguy, Lila Saraiva, Luiz Jahnel, Mara Ulhôa, Maria Inês Ribeiro, Marcos Esteves, Paula Magalhães, Pedro Pansica e Nina de Souza Lima.

Nos próximos 50 anos, novas gerações vão aportar à mesa da “diretoria”, que seguirá recebendo novos membros, com a mesma generosidade, inteligência e senso de humor e a mesma pegada cultural de sempre. É o que se espera. E no cardápio, tem algo que não pode mudar: o filé surprise com arroz à piamontese (creme de leite, parmesão, champignon, cheiro verde e arroz branco), filé recheado com presunto e muçarela no meio, empanado, acompanhado de batata frita, ovo e banana à milanesa.

Compartilhe